terça-feira, 30 de março de 2010

A Democracia Racial Reabilitada*

A Democracia Racial Reabilitada*

Kleber Chagas CerqueiraKleber Chagas Cerqueira, Professor de História e Consultor Legislativo da Câmara Legislativa do DF

kleberch@gmail.com

A edição da “revista Veja” de 6 de junho traz, como matéria de capa, um virulento ataque às políticas afirmativas, em especial às cotas para negros nas universidades. Como gancho a história dos gêmeos Alex e Alan, um aceito, outro rejeitado na cota racial estabelecida pela Universidade de Brasília para inscrição para seu vestibular. A indignação contra o erro da banca examinadora da UnB serviu para reforçar o combate feroz, a verdadeira cruzada que vem mobilizando setores conservadores contra as ações afirmativas e suas políticas de inclusão social.
A comparação que a revista faz dessas políticas com o nazismo e o apartheid é de um cinismo e de um mau-caratismo sem limites: iguala políticas de discriminação odiosas com ações afirmativas; políticas feitas para afastar e impedir acesso a direitos com outras voltadas à inclusão social, a assegurar direitos historicamente negados.
Os democratas raciais anti-cotas estão muito preocupados com a “barbárie segregacionista” que as políticas afirmativas podem provocar. Mas eles se preocupam à toa: a barbárie segregacionista já existe em nosso país há séculos, e é deprimentemente confirmada a cada nova pesquisa do IBGE. Ela está escancaradamente estampada nos indicadores do mercado de trabalho, da violência urbana, do acesso à saúde e à educação.
Afirmam também os democratas raciais que a ciência já provou que raças humanas não existem, como se racismo precisasse de apoio científico para acontecer.
Preocupam-se também com as conseqüências legais de ações afirmativas, que, ao tratarem desigualmente brancos e negros, estariam ferindo nossa Constituição. Mas, como diz um de nossos maiores juristas, “como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê-las à regência de tais ou quais regras (...) é preciso indagar quais as discriminações juridicamente intoleráveis”.
A prova dos nove das reais intenções dos que combatem as políticas de cotas são as sugestões que comumente oferecem como alternativa à “barbárie segregacionista”. A principal delas, uma educação pública de qualidade, que promova “oportunidades iguais para todos”. Sem perder tempo com o fato de que nenhum dos proponentes desse caminho coloque seus filhos na escola pública, dispondo-se a batalhar concretamente pela sua melhoria, vamos apenas citar um belo manifesto em defesa da educação pública de qualidade:
“A educação nova, alargando a sua finalidade para além dos limites das classes, assume, com uma feição mais humana, a sua verdadeira função social, preparando-se para formar ‘a hierarquia democrática’ pela ‘hierarquia das capacidades’, recrutadas em todos os grupos sociais, a que se abrem as mesmas oportunidades de educação. (...) montada, na sua estrutura tradicional, para a classe média (burguesia), enquanto a escola primária servia à classe popular, como se tivesse uma finalidade em si mesma, a escola secundária ou do 3º grau não forma apenas o reduto dos interesses de classe, que criaram e mantêm o dualismo dos sistemas escolares”.
Trata-se do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, assinado, entre outros, por Anísio Teixeira, Roquette Pinto e Fernando de Azevedo. Como se vê, a preocupação com a melhoria da educação pública e com a igualdade de oportunidades em nosso país tem, pelo menos, setenta e cinco anos (na verdade mais que isso), e a “democracia racial” e a “igualdade de oportunidades” estão como estão em nosso belo país mestiço de universidades brancas, tribunais brancos, generalato branco, cardeais brancos e executivos brancos.
Talvez a esperança dos nossos democratas raciais anti-cotas seja que em mais setenta e cinco anos as coisas andem mais um pouquinho e eles possam escrever um novo manifesto em defesa da escola pública com algumas propostas diferentes das escritas em 1932.
A novidade hoje é que os ideólogos da democracia racial, que já foram mais comedidos e circunspetos entre nós, agora são militantes engajados. Escrevem livros, artigos em profusão e condenam essa “mania de macaquear os Estados Unidos”, querendo importar de lá políticas que têm a ver com a realidade deles (escravidão violenta, segregação explícita, etc.) não com a nossa que, como sabemos desde Gilberto Freyre, foi de uma escravidão patriarcal, quase boazinha, que produziu um carnaval racial do qual todos nos orgulhamos. Sem perder tempo em mostrar o quanto a visão freyreana do Brasil é pra inglês ver, registra-se apenas que, por esse argumento de não macaquear, podemos acabar condenando o sindicalismo e outras formas de luta de classes, achando que isso é coisa de europeu.
O que toda ideologia faz é, a partir de elementos da realidade, conformar uma visão de mundo convincente, capaz de justificar aquela realidade. Com o mito da democracia racial brasileira não é diferente. O maior furo desta ideologia, porém, é que ela se baseia quase que exclusivamente em opiniões e teorias, faltando-lhe sempre os elementos de realidade. Os poucos que sempre aparecem são as exceções, quase caricaturais, inevitavelmente soterrados pelas estatísticas de nossa sociedade.
Mas seu maior perigo é onde tal ideologia nos leva: na desmobilização de questões substantivas da democracia contemporânea e no apego a jargões iluministas, do tipo “todos são iguais perante a lei”, que se encontra em quase todas as Constituições do mundo desde o século XIX, sem que os verdadeiros democratas tivessem podido abaixar suas bandeiras um segundo sequer, julgando estar tudo resolvido.
Em tempo; o artigo 179, inciso XIII, da Constituição de 1824, do Império brasileiro, tinha a seguinte redação: “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Só que uns eram mais iguais do que outros, coisa que, felizmente, graças aos militantes da democracia racial anti-cotista, não existe mais em nosso país.
*A inspiração deste artigo é o livro do historiador baiano Jacob Gorender, “A Escravidão Reabilitada”, cuja leitura é indispensável para compreender a fundo o que se esconde sob a ideologia da “democracia racial brasileira”. O artigo é uma homenagem a um dos maiores estudiosos do “escravismo colonial” brasileiro, título de sua obra magna, um clássico da historiografia nacional.

**Ver o pequenino e monumental “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, de Celso Antonio Bandeira de Mello.

2 comentários:

  1. Olá, Teresa! Boa tarde!

    Obrigado pelo comentário no Terra Brasilis. O problema é que não posso deixar de exibir a foto daquele sujeito, sobretudo, porque o nome tá tão "biitinho": O BOBO DA CORTE. rsrsr

    Grande Abraço!

    ps. A partir de agora o Terra Brasilis estará linkado no ABRA OS OLHOS!

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